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Conselho Metropolitano de Formiga

O governo deve estar a serviço do povo

Texto de Antonio Frederico Ozanam:

Existem duas principais classes de governo e estas duas classes de governo podem ser animadas por dois princípios opostos. Ou é a exploração de todos em proveito de um só (e isso é a monarquia de Nero[1], uma monarquia que eu abomino), ou é o sacrifício de um só em proveito de todos (e isso é a monarquia de São Luís[2], que reverencio com amor). Ou é a exploração de todos em proveito de cada um (esta é a república de Atenas[3] e a do Terror[4], e a esta eu amaldiçoo), ou é o sacrifício de cada um em proveito de todos (e esta é a república cristã da Igreja primitiva de Jerusalém; quem dera também a dos últimos tempos, o estado mais elevado ao qual a humanidade pode ascender).

Todo governo me parece respeitável, enquanto representa o princípio divino da autoridade; neste sentido compreendo o omnis potestas a Deo[5] de São Paulo.  Mas, penso que, frente ao poder, é preciso colocar também o sagrado princípio da liberdade; penso que seja possível reivindicar energicamente este lugar; penso que se deve advertir, com voz valente e severa, ao poder que explora em vez de se sacrificar. A palavra foi feita para contrastar a força, é o grão de areia onde o mar vai arrebentar.

A oposição é algo útil e digna de louvor; não é assim com a insurreição. Obediência ativa, resistência passiva; Prisons[6] de Silvio Pellico e não Paroles d’un croyant[7].

Vejam agora: nós somos demasiados jovens para intervir na luta social. Permaneceremos pois, inertes, em meio a um mundo que sofre e geme? Não; Um caminho de preparação se abriu para nós; antes de fazer o bem público, podemos tratar de fazer o bem para alguns; antes de regenerar a França, podemos socorrer alguns de seus pobres. Por isso, eu queria que todos os jovens sábios e de coração se unissem para alguma obra caritativa, e que se formasse em todo o país uma vasta associação generosa para o alívio das classes populares.

 

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Carta para Ernest Falconnet,
de 21 de julho de 1834.

 

 

Comentário:

Frederico escreveu  este texto apenas 15 meses após a fundação da primeira conferência de caridade (de 23 de abril de 1833). Neste curto período de tempo já haviam acontecido muitas coisas importantes (e outras estavam a ponto de acontecer) para a incipiente Sociedade de São Vicente de Paulo:

  • Embora inicialmente tivesse resistência para admitir novos membros para a conferência, já no mês de junho de 1833 uniram-se ao grupo dos fundadores: Léonard Gorse (1808–1901)[8], Colas Gustave de la Noue (1812–1838), Charles Hommais (1813–1894), Émile de Condé (1810–1886), Amand Chaurand (1813–1896), Pierre-Irénée Gignoux (1811–1890) e Henri Pessonneaux (1812–1869), este último primo de Ozanam. Nas férias de verão de 1833, já ultrapassavam 15 membros. No início do novo ano acadêmico, mais de 25 membros solicitaram sua admissão (muitos de Lion). O número foi crescendo sem cessar (ao final de 1834 já eram mais de 100 membros[9]);
  • À pedido do confrade Le Prevost[10], a Sociedade coloca como patrono São Vicente de Paulo, no dia 4 de fevereiro de 1834. Pouco depois a conferência de caridade passaria a se chamar Sociedade de São Vicente de Paulo.
  • Com o crescimento da Sociedade, o presidente Bailly achou importante ter o apoio do clero. Pediu que se preparasse um informativo, que foi lido na reunião do dia 27 de junho de 1834[11], com a presença do convidado Padre Pierre-Augustin Faudet (1798-1873), pároco de Santo Estêvão do Monte, que ficou muito impressionado com a obra realizada pelos leigos:

Ser úteis a nossos irmãos e a nós mesmos foi a dupla finalidade que nos propusemos. […] Nos tornamos auxiliares das Filhas da Caridade, a quem pedimos conselho e ajuda, e com elas aprendemos a conhecer as misérias dos Pobres. […] Nos dirigimos aos Pobres já inscritos nas listas de caridade; tivemos que bater às portas do indigente para ajudas materiais. […] Entrando no domicílio do Pobre foi nos permitido curar as feridas de seu corpo. […] A caridade, senhores; esta é a palavra que deve mobilizar os homens; […] com ela uniremos os homens e as coisas, pois sua humanidade, um dia, só terá irmãos em seu seio.

  • Devido ao grande número de membros, em dezembro de 1834 começa a se considerar a divisão em dois da primeira conferência. O debate foi longo: Ozanam apoiava a divisão, outros – entre eles Paul Brac de La Perrière (1814-1894), secretário da conferência – estavam contra. Finalmente, no dia 17 de fevereiro de 1835 se votou pela divisão, que foi aprovada, dando lugar as conferências de Santo Estêvão do Monte, a original, e a nova de São Sulpício.

Em julho de 1834, Frederico era um jovem de ideias bastante legitimistas[12], que estudava direito e literatura na Universidade de Sorbonne em Paris. Não está alheio ao vai-e-vem político que ocorre em seu país, e fala deles com seus amigos, embora opine que ainda são “demasiadamente jovens para intervir na luta social”.

Anos depois, Frederico apostou numa democracia baseada nos valores cristãos, onde participariam políticos católicos que dedicassem seu cargo ao alívio das necessidades do povo e, em particular, das classes necessitadas. Na França, alguns de seus irmãos religiosos exigiam que a Igreja, como instituição, tivesse poder e influência sobre os órgãos governamentais; mas este não era o posicionamento de Ozanam.

Em 1830, Félicité Robert de Lamennais (antes de cair em desgraça[13]) escreve uma carta apontando nesta mesma direção: a separação Estado-Igreja:

A Igreja é oprimida por todos os governos e pereceria se esta situação durasse. Portanto, é preciso libertar a Igreja, o que hoje só pode ser feito separando-a totalmente do Estado. A salvação, a vida, depende disso e não duvido um só instante que, nestas grandes catástrofes  de que somos e continuaremos sendo testemunhas, o objetivo final da Providência  é de trabalhar para esta tão necessária libertação.

No que diz respeito à França, não duvido que tenhamos que atravessar tempos muito tristes e muito difíceis. Não disse nada sobre isso que não continue pensando ainda. Mas cada condição tem seus próprios deveres, e todos os deveres de nossa atual condição se resumem, em minha opinião, num só: o de nos unirmos para impedir, se assim for possível, a anarquia que nos ameaça e, portanto, apoiar francamente o poder atual enquanto nos defende, ao defender-se a si mesmo, contra a fúria do jacobinismo[14]. E o que o jacobinismo fará se triunfar? Perseguirá a religião, abolirá toda educação cristã, atacará violentamente as pessoas, as propriedades e todos os direitos. E o que devemos pedir então? A liberdade religiosa, a liberdade de educação, das pessoas e das propriedades, ou seja, desfrutar dos direitos sem os quais a sociedade não pode sequer ser entendida; ou seja, o que nunca deixei de reivindicar nos últimos quinze anos. E como continuar estas reivindicações sem a liberdade de imprensa? Eliminá-la e não haverá mais nada a se fazer senão curvar a cabeça sob todas as tiranias. Para o futuro, como para o presente, não há, pois, salvação possível senão com a liberdade e para a liberdade[15].

Ozanam não reflete sobre um sistema político determinado (monarquia ou república), mas sobre quais princípios deve se basear qualquer sistema. Utiliza a mesma expressão para qualificar os sistemas que ele reverencia: “o sacrifício de cada um em proveito de todos”.

Diante de uma classe política, que ao longo da história, e também hoje, tem se preocupado muito pouco pelo bem comum e muito pelo próprio interesse, o papa Francisco disse, em 2019, que “um político jamais deveria semear ódio ou medo, mas somente esperança. Devemos ajudar-lhes a serem honestos, a não fazer campanha com bandeiras desonestas: a calúnia, a difamação, o escândalo”[16].

Ozanam termina sua reflexão reconhecendo que ele e seus amigos são ainda muito jovens para intervir nestes assuntos. Mas, mesmo assim, os chama a realizar o que está ao seu alcance para aliviar as necessidades sociais e “tratar de fazer o bem para alguns”. Por isso, está muito entusiasmado com o trabalho das conferências, e conclui afirmando que desejaria que “todos os jovens sábios e de coração se unissem para alguma obra caritativa, e que se formasse em todo o país uma vasta associação generosa para o alívio das classes populares”.

Como vimos no início deste comentário, a Sociedade de São Vicente de Paulo estava dando passos importantes para atingir este objetivo.

 

Javier F. Chento

 

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